Ser homem é

no principio a vida era andrógina, o tempo era andrógino. é ao andrógino que nos dirigimos novamente, apressadamente. a que preço?
um homem é já uma miragem na geração pós-adolescente dos nossos filhos; um perfume de macho que se sente ainda aqui e ali na brisa que passa.
ser homem é uma invenção da natureza, antiga, herdeira da criação dos sexos, da reprodução. uma fórmula de sucesso repetida e reinventada até à exaustão do nosso tempo.
os nossos pais homens ensinaram-nos pela imitação um ser agressivo, machista, terno, canalha, auto-destructivo, suado, lavado, irónico e trocista; um ser homem que já não pudemos ser e muito menos ensinar a ser, no seu lugar construímos uma nova masculinidade insegura e bipolar.
Elizabeth Badinter escrevia em “XY: Sobre a identidade masculina” que compete às mulheres ensinar aos seus filhos o novo masculino, assim será. os homens são incapazes de o fazer.
mas, amáveis construtoras, sabeis o que é um homem?
se tendes de construir um homem é bom que tenhais uma imagem ou um esboço de homem. algo que vos guie na escolha da peça certa entre o amontoado de peças de puzzle aos vossos pés (elas são o vosso bebé homem, o vosso amigo adolescente). construireis o que quiserdes. às vossas avós tocou moldar os vossos avôs a vós toca todo o processo de construção. que homem quereis construir, uma marioneta ou um ser para admirar e amar?
...
ser homem é ser a dualidade construtora e construída de uma mulher. é ser a entidade identitária do ser mulher, é ser o macho necessário à invenção da fêmea.
sem o masculino o feminino será também o cadáver de um tempo passado oculto na poeira cósmica… uma imagem da beleza perdida, uma saudade, um pôr-do-sol sem ninguém que lhe aprecie a beleza.
ser homem é saber ser uma porta. a porta que dá para a alteridade criadora do verdadeiro enamoramento. ninguém se entrega perdidamente a um andrógino. ninguém se suicidará por amor como fez Jeanne Hébuterne horas depois da morte do seu amado Amadeo Clemente Modigliani. ser homem é ser chama que queima.
ser homem é ser o sobressalto necessário na inércia infantil de uma rapariga, fogo que apaga o fogo de uma jovem mulher e a fogueira que reacende a chama da mulher madura. ser homem é desejar apesar de tudo, é desejar antes de ser desejado.
ser homem é não temer a morte quando se morre.
ser homem é dar presta sepultura ao desejo do nada.
ser homem é ousar desrespeitar. é conspurcar com sémen um vestido, uma pele, uma boca ou um sexo.
ser homem é saber roubar o que se não pode pedir. é exigir. é desbaratar os exércitos alinhados pela moral, pela cordura, pela racionalidade, pelo medo e pela auto-censura de uma mulher.
ser homem é ser a ponte para os corpos suados, cansados, pós-orgásticos. é ser autor daqueles minutos em que as pernas se recusam a obedecer à ordem do cérebro para erguer-se do lugar da posse possuída. e esses minutos podem ser os últimos de verdadeira paz, de verdadeira ausência de sofrimento, na vida de uma mulher.
ser homem é despertar a puta que há em todas as mulheres.
ser homem é despertar, pelo ardor e pela sedução, corpos calados e sexos moribundos.
ser homem é estar sempre pronto a perder-se numa grande mulher depois de ter amado até à exaustão tantas outras.

ser homem é ser o nómada canalha que conhece de cor o nome de todas as estrelas do céu**.


* neste parágrafo tenho comigo Elisabeth Badinter.
** “At the end of the congress, the lovers with modesty, and not looking at each other, should go separately to the washing-room. After this, sitting in their own places, they should eat some betel leaves, and the citizen should apply with his own hand to the body of the woman some pure sandal wood ointment, or ointment of some other kind. He should then embrace her with his left arm, and with agreeable words should cause her to drink from a cup held in his own hand, or he may give her water to drink. They can then eat sweetmeats, or anything else, according to their likings and may drink fresh juice,1 soup, gruel, extracts of meat, sherbet, the juice of mango fruits, the extract of the juice of the citron tree mixed with sugar, or anything that may be liked in different countries, and known to be sweet, soft, and pure. The lovers may also sit on the terrace of the palace or house, and enjoy the moonlight, and carry on an agreeable conversation. At this time, too, while the woman lies in his lap, with her face towards the moon, the citizen should show her the different planets, the morning star, the polar star, and the seven Rishis, or Great Bear.
This is the end of sexual union.”

Vatsyayana , The Kama Sutra

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