Dame de Cerbère

Portbou é a aldeia de fronteira pirenaica entre França e Espanha -uma extraordinária tripla fronteira feita de mar, comboio e estrada-, anoitece e sento-me numa mesa da esplanada do café Ricky, a uns metros o mar afaga a areia e a temperatura de Verão é agradável; peço o habitual: um "carajillo de baileys".
na mesa em frente está um grupo curioso, provavelmente família. são franceses e não estão de férias. mais tarde saberei que são da aldeia de fronteira francesa, Cerbère - em catalão Cervera de la Marenda - e vieram tomar café à sempre mais interessante aldeia vizinha de Portbou. há um homem de uns 47 anos, frágil e brincalhão, uma barbie de uns 50 anos - aproximando-se a passos largos de barbie geriátrica - que se lhe der atenção me tentará seduzir e para evitar ser deselegante com ela não a olho. ao lado da barbie está provavelmente a filha ou imã, uma mulher bonita, sensual, vestida como uma "mãe", com aliança de casada, farta de ser mãe ou sabe-se lá farta de quê, com aquele ar inocente que têm as casadas quando o amor pelo marido já se foi, após longos anos de casamento e se descobrem as adolescentes que são no amor, como se o casamento tivesse sido apenas um parênteses, um nada erótico. em frente dela, de costas para mim, está a filha de uns 8 anos, irrequieta. é de facto uma bela mulher, sob o vestido de flores adivinham-se as ancas largas e a cintura estreita. cabelo comprido, liso e quase loiro, típico das francesas, sem maquilhagem e unhas por pintar; criar aquela filha está a fazê-la desperdiçar uma parte importante da sua vida: o erotismo.
olho-a descaradamente, o meu olhar diz-lhe o que penso dela e a mensagem é clara e simples: "és uma bela mulher e dás-me tesão". tenho obtido as mais díspares reacções a este olhar: as mulheres que gostam de gostar de homens costumam reagir bem, as mulheres do norte da Europa e algumas americanas retribuem  e sorriem quase de imediato, finalmente, as lésbicas ou as sexualmente muito frustradas agridem-me com o olhar e/ou a postura corporal. esta francesa mostrou surpresa e agrado no olhar, sem desviar o meu forcei-a a baixar a cabeça e desviar ela o dela. rapidamente retomou o contacto e desta vez sorri-lhe e sorriu-me. retomei a leitura do meu livro desses dias: "O Império" de Riszard Kapuscinski.
senti pena por nós mas há muito que sei que a vida é a arte do possível; eu esperava uma amante para jantar, viria daí a menos de uma hora e nós os dois não tínhamos a mínima hipótese, nem um touch-and-go seria possível porque o empregado do Ricky, que há muito quer levar a minha amante para a cama, não perderia a oportunidade de tirar partido de uma qualquer intimidade minha com a francesa; concentrei-me no livro e tentei ignorar o olhar dela. sabia que me observava cheia de curiosidade e desejo.
ao fim de uma meia hora pagaram e levantaram-se, olhou-me e despediu-se com um aceno de mão, retribui. todos avançaram uns 10 metros e ela ficou para trás, dirigiu-se à minha mesa e porque eu estava sentado acocorou-se ou ajoelhou-se (de facto o efeito em mim é o mesmo, adoro esta postura numa mulher) e em francês perguntou-me o nome, perguntei-lhe o dela, de onde era e que estava eu ali a fazer. fui sincero e vi decepção mas sobretudo tristeza nos seus olhos. deu-me um leve beijo nos lábios e ao levantar-se pegou-me na cabeça e beijou-me o cabelo. juntou-se ao resto da família e partiu.

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