O punho cerrado

Gare de Sta. Apolónia, acabava de chegar de Coimbra. Um dos mendigos, dos muitos que passam por ali a noite, aproximou-se de mim com aquela cara miserável que convém a alguém que vive daquilo que se julga sem direito: o meu dinheiro. Teria uns cinquenta anos, camisa desabotoada, calças às riscas, casaco castanho às nódoas; arrastava uma perna retorcida. Pediu-me 100 paus, dei-lhos e como estava nos meus dias comecei com filosofias, e lares, e Seguranças Sociais e reabilitações. De repente agitou-se, abriu a camisa apontou-me o lado esquerdo para o peito e disse naquela voz entaramelada pela manhã dum bêbado:
— Vês este punho fechado, com dois elos inteiros e um partido?
Acenei com a cabeça.
— Vi-o pela primeira vez há mais de 20 anos numa viagem por aí, pelo mundo. Olhe, dessa vez voltava da Suiça, da fruta. Umas horas antes um qualquer desgraçado tinha-me roubado a mochila na praia de Torremolinos, tinha ficado sem nada, nem umas cuecas tinha, foi com uma toalha à volta do cu que fui ao comissariado da Guardia Civil. “ Las hermanitas de los pobres” vestiram e deram-me de comer (dinheiro é que não, não fosse eu gastá-lo em droga ou vinho). Sabe o que fiz quando percebi que estava sem dinheiro, sem passaporte, sem roupa? Ri, fartei-me de rir! Só parei de rir quando uns dias depois, em Lisboa, pedi dinheiro emprestado ao meu irmão.
— Onde é que viu o desenho, o punho?
— Era um daqueles desenhos que estão em álbuns nas lojas onde fazem tatuagens. Acho que a loja se chama “O império del tatoo” e fica no centro de Torremolinos, ao pé da praça.
— Fez a tatuagem?
— Não, dessa vez não tinha dinheiro. Mas voltei lá, nunca mais esqueci o desenho. Voltei até várias vezes mas nunca o fazia; ou porque a casa estava fechada ou por causa do sol e do mar nunca fiz a tatuagem. Finalmente numa Primavera, uns 10 anos depois, fiz aqui o boneco que você viu. Fi-lo com a promessa de acrescentar um elo à cadeia a cada compromisso que aceitasse da vida. Um casamento, um filho, uma casa, sei lá uma prisão qualquer, pumba, mais um elo, até que não houvesse corpo para tatuar elos!
— Mas... tem poucos elos, disse eu, titubeante, perante a sofreguidão verbal do homem.
- ...Nos primeiros dias do Verão desse ano.
As lágrimas afloraram-lhe aos olhos, os desgraçados também choram.
— Nos primeiros dias do Verão desse ano, num acidente de carro, desfiz o meu corpo e a minha vida d’homem livre. A promessa de poucas semanas antes já não fazia sentido. Era agora eu que corria atrás dos compromissos, é que sabe, a liberdade não ajuda a viver e menos ainda ajuda a um desgraçado, tinha-me tornado um peso para a Segurança Social. E não pense que já sabe o resto porque a vida é para homens e não p'ra meninos!
— Eu, eu não penso nada.
— É melhor que continue assim. E por acaso não tem aí mais uma moedinha?
Não, não tinha mas acabei por dar-lhe uma nota de 500. No fundo devia ser pelo dinheiro que contava a história da tatuagem.
A conversa em Sta. Apolónia haveria um dia de me deixar maldisposto, só que naquela altura não tinha forma do saber; afastei-me por isso, satisfeito e com a sensação de dever cumprido: ouvira um pobre coitado e sustentara um vício. Tocavam já as trompetas no paraíso anunciando a minha chegada.
Enquanto me afastava pareceu-me ouvir entremeado por um riso meio demente meio jocoso:
— Pois é “menino”, o punho, esse continua com dois elos e meio. Se estivese no teu peito tinhas elos até ao cu.
O Professor

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