Harstad

Harstad em Agosto
Em Julho de 1993, estava em Lisboa, sem dinheiro, com um mês de férias e nada para fazer.
Os meus amigos, em geral, quando não tinham nada para fazer, iam para a cama e dasatavam a foder, não iam para a Noruega. Eram jovens mas já eram sábios.
Sargento Bernardo
Eu não, era apenas um intelectual e não sabia foder, fui para a Noruega.
Quando se está a 4900km do nosso destino de férias e não se tem dinheiro é melhor preparar-mo-nos para o pior e só assim seremos felizes.

Como não tinha dinheiro para transportes, decidi viajar a custo 0, pedindo transporte emprestado a quem passava na estrada.
A vigem correi de forma fabulosa, de reabertura de fronteiras, para o ntelectual nerd que eu era, foi mais um necessário contraponto de realidade.
Um aparte para quem nunca viajou de boleia: as pessoas que nos transportam sabem que nada sabemos deles e que nunca mais nos verão, por isso abrem-se, abrem-nos a sua intimidade como nunca fizeram a ninguém. em 10 anos e perto de 100.000 à boleia, aprendi a falar 7 línguas e  aprendi mais dos seres humanos do que se tivesse lido uma biblioteca intteira. Só lamento ser tão pouco dotado de sensibilidade e empatia ou seria hoje um xamã de primeira água neste Sec. XXI tão necessitado de condutores espirituais laicos.
Continuando.
Com a viagem perto do seu zénite que a dada altura ficou claro, o ponto mais a norte possível, O Cabo (Norte - Ushuaia, a 54° 48' 57" S, está bem "mais longe" do polo), tocou-me atravessar as famosas ilhas Lofoten a que se chega depois de uma alucinante viagem entre vagas monstruosas desde Bodø em pleno sol da meia noite.
Outro à parte: quem nunca viveu esse estranho sol que se prepare, tem efeitos físicos estranhos porque o nosso corpo se recusa a descansar devido ao sol estás à meia noite no ceu e Natureza alterada também não ajuda; a ordem natural das coisas está profundamente perturbada - os pássaros, as plantas, os insectos, alimentam-se as 24 horas e o próprio céu está diferente. É surreal ver o sol descer e em vez de se pôr,  recomeça a subir, fazendo uma oval na abóbada celeste em vez do semi-arco a que estamos habituados. Em mim, o sol da meia noite teve um efeito curioso: uma propensão ao riso e a não levar nada a sério, uma certe ebriedade.
Neste quadro de alteridade profunda perante o meio cheguei às 5h00 a Harstad. O solo no céu e a cidade silenciosa e completamente vazia, como se fosse uma cidade fantasma - para não enlouquecerem os noruegues simulam a noite nas suas casa com taipais de madeira do lado de fora das janelas. Deambulei pela cidade gelada, com aquele sol que nada aquecia. Procurei um lugar para montar a tenda e enfiar-me no saco-cama. O belo jardim da igreja luterana pareceu-me adequado.
Umas horas depois o filme do costume: pessoas que passam se virão e comentam, nem imagino o quê, certamente uma tenda azul diante da igreja não passa despercebida.
As horas foram passando e a tenda já estava deliciosamente quentinha. Ouço uma voz que me chama insistentemente. Abro a tenda e dou de caras com o presbítero, vestido de preto, de bíblia na mão, como que para me exorcizar logo ali. Explica-me em alemão que não se pode acampar ali e vai-se embora com educação.
Ah, mas estava-se agora tão bem no quentinho da tenda. Quis lá saber, fechei a tenda e voltei a adormecer.
Umas duas horas mais tarde, voltam-me a chamar. Quem?
Outra vez o presbítero, desta vez vestido de azul, de polícia, boné e tudo. Com galões de oficial!
Alto, apesar da vontade de rir, contive-me!
Desta vez disse-me, meio em inglês meio em alemão:
- Camping forbiden!
- I know, I know, respondi, e fiz tenção de voltar para dentro e fechar novamente a tenda. Aproximou-se e segurou a tenda.
Alto que este é o Anders Behring Breivik. Passei a vê-lo com outros olhos.
- You have to go, or...*
E aqui o homem parou. Começou a ficar vermelho, sem saber o que dizer. Até dava pena.
E ao fim de uns segundos concluiu:

- You have to go or we drive you to the Bus station!

Completamente aterrorizado com a perspectiva de ser confortavelmente conduzido à estação de autocarros, desmontei a tenda e fui a pé até à... estação de autocarros.


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(*) Consigo imaginar aquela pobre criatura a dar-se conta que NUNCA ninguém tinha acampado diante da igreja e que à boa maneira norueguesa não havia nenhuma lei ou regulamento escrito que proibisse acampar aí.

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