113

I
Amélia


Amélia tem pela frente a longa noite do soldado de sentinela, a noite da enfermeira.
Lá fora está a beleza do meio da Primavera, mas aqui cruzam-se dores, misérias e esperanças desrazoáveis. Há anos que é enfermeira do exército.
Cada noite, Amélia faz a rotina que lhe ensinaram: receber o turno, ler os relatórios de enfermagem, dar a medicação, trocar umas palavras com os soldados internados e preparar a medicação seguinte. Mais tarde, na quietude da madrugada fará os seus relatórios.
Pelas 2h00 da madrugada o silêncio do hospital é entrecortado por algum gemido ou murmúrio do paciente do quarto 113.
Amélia tem medo de pensar. Na madrugada não tem como não se deixar tomar pela sua alma. Um a um, os seus fantasmas apresentam-se, sem serem convidados.
Um deles, um velho autoritário e sábio diz-lhe:
- Eu conheço-te bem, disfarçaste-te mas não enganas ninguém: nasceste puta, para servir e ser usada. Arranjaste este trabalho para disfarçares os teus impulso de cabra mas a mim não enganas.
- Mas servir a quem, responde Amélia?
Tem um homem em casa, dedicado, atento e cuidadoso, meigo, um homem como os tempos de hoje
mandam um homem ser. As outras enfermeiras invejam-lhe a sorte, ela não se inveja a sua própria sorte. Não a satisfaz ter um homem que prefere cuidá-la, repetir o ritual dos machos agradecidos e sempre prontos para persuadir a sua fêmea a dar-lhes sexo em troca de serem dóceis e carinhosos. Talvez seja suficiente para as outras mas Amélia sempre desejou que algum dia ele lhe ralhasse, fosse duro, até injusto com ela, que percebesse que ela afinal tem sonhos e desejos de puta, que às vezes é só uma fêmea em cio... E então, sem um carinho ou um sorriso, sem que ela "quisesse", a encostasse a uma parede, lhe arrancasse as cuecas e a possuísse ali, indiferente aos queixumes dela, a possuísse assim, simplesmente porque tinha tesão, nada mais, sem preliminares ou negociações. Gostava que ele a tratasse como o seu brinquedo, simplesmente uma boca, uma cona e um cu.
Nunca teve coragem de lhe confessar o desejo de às vezes ser tratada assim e ele nunca o intuiu das indirectas que ela foi largando, uma e outra vez nos momentos de paixão.
- Ele sabe Amélia. Não te enganes, diz-lhe o fantasma do ciso. Ele sabe mas, como a maioria dos homens, não é capaz de mudar a rotina e agredir a mulher amada. Estes homens só sabem agredir depois de já não sentirem desejo e é precisamente nesse momento que não se pode agredir uma mulher.
- Sim, sei disso.
- Então porque não tens uma conversa franca e directa com ele? Ele ama-te, vai entender.
- Não posso, ia estragar tudo. Ia achar-me tarada, como o meu outro namorado me disse. É melhor calar-me. Ia correr mal.
- Então serve a outro, arranja um amante de "pegada" forte, um que te trate como a cadela vadia que és!
Mas como? Onde está esse amante? A quem servir como enfermeira, como puta enfermeira?
Um gemido prolongado e um "ai" rouco arrancam-na do sonho. Maquinalmente abre o cofre e prepara um frasco de morfina. Esta noite, se o festim demoníaco do quarto 113 se prolongar, dará a injecção.
Amélia não é uma mulher bonita, sem ser feia: 1m65 de altura, uns quilos a mais, formas arredondadas, cabelos compridos sempre apanhados, rosto e olhos por pintar. Antes pintava-se mas o seu homem acha as mulheres pintadas demasiado "putas". Como é mais tolerante com as unhas, e o serviço tolera unhas pintadas, ela pinta-as. Amélia passa a próxima hora a pintar as unhas dos pés e das mãos de carmim. Olha o resultado e agrada-lhe, o seu homem há-de resmungar algo e ignorar o feito; de manhã alguma colega mais purista há-de também criticá-la por trabalhar com verniz nas unhas. Amélia fá-lo porque sente um prazer perverso em emputecer-se assim, um bocadinho, para ela e para o mundo.
São 3h00 da manhã, Amélia sabe que tem de fazer alguma coisa ao paciente do 113 e não sabe bem o quê. A injecção de um analgésico convencional ia incomodá-lo mais que ajudá-lo a descansar. A morfina é uma sentença de morte no estado em que ele está. Seria escrever-lhe na cabeceira da cama: "Caso terminal".
O silêncio da noite, a escolha difícil do que fazer e a indecisão perturbam-na, sente um desconforto entre as pernas, tira as cuecas para o ar fresco lhe subir pela saia e arruma-as na mala.
Puta, mulher.
Fará o resto do turno sem cuecas.
Talvez até se masturbe, vai ajudar a passar o tempo. Fantasiará um rapto no serviço, de madrugada, será levada para o vão das escadas, a sua obediência aos gestos do captor e a submissão no olhar vão humanizá-lo, não deixará de a possuir à força mas não será brutal. Quando ele se vier, sentada na cadeira, tocando-se, de pernas bem abertas, Amélia vai vir-se e na sua cara vai desenhar-se o sorriso estúpido pós-orgásmico.

II
113


Novamente os gemidos do soldado do quarto 113.
- Faz qualquer coisa Amélia, repete fantasma autoritário!
Há mais de um mês que o soldado jaz na cama. Foi ela que o recebeu no dia em que chegou ao hospital. Tinha sido atingido no rosto e no tronco por uma granada de mão incendiária lançada por um companheiro inepto. As queimaduras por fósforo tinham mau aspecto, cego de um olho, quase cego do outro olho, uma orelha amputada, desfigurado e queimado. Após um mês o cenário era ainda pior: febril, em muitos períodos delirante, com demasiadas dores e 30% do corpo com queimaduras de 4º grau.
Amélia recebeu-o com a alma ainda em bom estado, apenas o corpo se havia consumido. Naquele dia conseguiu falar-lhe e confortá-lo. As mãos e o antebraço direito estavam intactos. Pegou-lhe na mão e disse-lhe.
- Força, vais ficar bom.
Com o passar dos dias foi vendo aquela alma diminuir, encolher, tornar-se pequenina sob o peso do sofrimento e da dor.
A voz de fada que a tinha persuadido a fazer o curso, há uns anos atrás, disse-lhe:
- Amélia, tens de fazer alguma coisa!
- Mas o quê, sufocá-lo com uma almofada, matá-lo sem que ninguém dê conta?
- Talvez, retorquiu a fada, era melhor, ia ser bom para a alma dele, ainda haveria alguma alma para morrer ao mesmo tempo que o corpo. Se esperares demasiado a alma morre antes do corpo e isso é sempre uma vergonha para todos o que ainda estão vivos.
- Não consigo, fazer-lhe bem é fazer mal a mim. Iriam descobrir o meu crime, não iriam estender. Iam ver-me como um animal e acabava longos anos na prisão.
- Amélia, estás sem cuecas, também és uma puta, há outra maneira...
- Não, não sei se sou capaz.
Abanou a cabeça para enxotar a voz da fada.
- Melhor não pensar, sou enfermeira. Vou ser apenas enfermeira, é mais fácil.
Preparou a dose de morfina para o 113. Daria uma dose de emergência e sabia bem que depois todos os enfermeiros iriam repetir essa dose e o soldado seria assumido como doente terminal e depois, e depois... finalmente o corpo sem alma capitularia e regressaria ao lugar de onde veio.
Em que pensaria o soldado?
Ainda pensaria?
Na noite o corpo fraqueja e todas as almas se fazem pequenas, pensou. Disse-se:
- Vai Amélia, faz o que sabes fazer bem. Sê uma máquina.

III
Puta


Preparou-se para sair. Pegou no tabuleiro com material e a injecção e fechou cuidadosamente a porta atrás de si. Espreitou uns segundos pela vigia da porta do quarto 113. O soldado estava naturalmente agitado. Nada de de muito anormal. Entrou. Deixou a porta semi-aberta para que a luz do corredor iluminasse suficientemente a cama para não ter de acender a luz do quarto e incomodar ainda mais o doente. Depositou o tabuleiro na mesinha ao lado da cama e aproximou-se do soldado pelo lado direito, o lado da orelha não amputada, para que pudesse ouvi-la sem esforço. Sossegou-o dizendo:
- Soa a enfermeira Amélia, venho reposicionar as suas ligaduras e limpá-lo. Precisa de alguma coisa?
Obteve como resposta um murmúrio e uma palavra que não entendeu. Pensou ser "não", via que ele hoje não estava com vontade de falar. Uma mão escorregou e agarrou firmemente o seu braço, o sinal era claro: uma crise de dor aguda trabalhava-lhe o corpo.
Ao fim de um mês de miséria quanto daquela alma ainda existia?
Se pegasse naquela mão e a roçasse na sua púbis, entre as suas pernas de mulher, ainda tiraria dele uma erecção?
- És uma perversa Amélia, uma puta mais puta que as outras. Não tens vergonha no que estás a pensar, disse-lhe a voz da velha virtuosa?
- Em nova puta em velha virtuosa, pensou Amelia. Diz-me antes, dou-lhe ou não a injecção? Responde-me tu que tens tantas certezas vindas do altíssimo.
- Amélia, uma alma pode recuperar e crescer, até no Inferno!
Retirou do seu braço a mão do soldado e começou a limpar-lhe as secreções do nariz, da boca e do olho aberto e percebeu-lhe o desconforto.
Dizem que os olhos são o espelho da alma mas a fraca luz que vinha do corredor não permitia perceber os sinais legíveis naquele olha de semi-morto.
Desceu-lhe o lençol até à cintura e ajeitou-lhe as ligaduras, sobretudo as que se tinham movido nas articulações. Queria evitar-lhe o desconforto e dor que provoca a derme ressequida ao ficar em contacto com o ar. Colocou creme nas zonas expostas e massajou suavemente o tronco do homem deitado. Pelo súbito silêncio dele sabia que estava a fazer tudo bem feito.
Olhou para o lençol descido e sentiu um calor súbito na barriga e uma falta de ar no peito: havia um falo debaixo do lençol!
A velha virtuosa apressou-se a dizer-lhe:
- Se queres fazer essas ordinarices tens um homem em casa Amélia!
- Mas ele quer-me a mim, à minha mão!
- Não continues, não faças isso ordinária!
Amélia ignorou a voz , meteu a mão por debaixo do lençol e agarrou o caralho do soldado. O estalo que recebeu na cara veio seco, sonoro e ouviu da cama uma voz fraca mas firme:
- Sua puta de merda.
Sentiu a cara quente, dolorida mas não largou. Pelo contrário sentiu-se viva, excitada, pronta para tudo. Nada importava, nem a porta aberta, não ia largar aquele caralho. Afinal o que seria ser apanhada a masturbar o doente do 113 com ser apanhada a sufocá-lo com uma almofada?
Começou a masturbar o falo cada vez mais duro. O segundo estalo na cara foi pior que o primeiro, apanhou-lhe uma orelha e deixou-a temporariamente surda. Segui-se um novo insulto:
- Sua puta de estrada, não devias estar aqui, devias estar na beira da estrada!
Amélia sentia-se bem, cheia de calor, excitada, aquilo fazia sentido, o que fazia àquele homem, como puta, fazia sentido, pensou enquanto usava as duas mãos, amaciadas com creme, num vai-vem competente no sexo do soldado.
Sentiu que se destrancava em si uma fechadura antiga. Sim, sou puta, é natural que ele me chame puta e me trate como uma.
Num gesto dúbio baixou-se um pouco, uma mão segurou-a pelo cabelo e mergulhou-se a cabeça no falo erecto. Começou a lamber a a chupar. Sentiu a pressão na nuca e deixou esse caralho entrar fundo na sua garganta.
- Amélia, o truque é respirar ou engasgas-te, disse-lhe uma voz nova, uma voz que nunca havia escutado. Surpreendeu-se.
Sim, já sabia que o truque para mantê-lo dentro da garganta sem vomitar é conseguir respirar ao mesmo tempo.
Foi mais fundo e lambeu o escroto. Ficou orgulhosa do gemido de prazer que ouviu e de que ele não lhe largasse nunca o cabelo.
- Puta, sim, mas tu gostas, as convulsões do teu sexo dizem-mo por ti, pensou!
Acelerou o movimento e sentiu o falo sussultar-lhe na boca e um jorro quente inundar-lhe a garganta.
Engoliu o liquido morno e adstringente.
Instantaneamente largaram-lhe o cabelo e após um par de convulsões ouviu um suspiro e sentiu o corpo martirizado serenar-se.
Ficou uns segundos mais naquele sexo que perdia tensão e com a língua limpou cuidadosamente o caralho que tinha acabado de se vir.
Compôs o lençol e segredou ao ouvido do soldado.
- Obrigado pelo que me deu.
Pegou no tabuleiro com a injecção por dar. Saiu e fechou quase silenciosamente a porta.
Do lado de fora da porta fechada, ficou longos minutos a olhar pela vigia e ver o soldado dormir. Aquele sono alheio dava-lhe um sentido a ela, um baptismo: puta amélia. Olhou para o relógio na parede, marcava 3h35 da madrugada. Uma madrugada sem flores, só pessoas, todos humanos, todos demasiado humanos.

Comentários

  1. Você é tarado.
    Sou enfermeira e SEI que nenhuma enfermeira ia fazer uma porcaria dessas.
    Trate-se. urgentemente.

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    1. Para já não preciso de tratamento. Uso a escrita como terapia.
      Diga-me lá em que serviço trabalha para eu lhe levar os kleenex porque essa reacção exagerada deixa ver precisamente aquilo quer negar...

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  2. Mais do mesmo... haja paciência!

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    1. Tem razão, é da minha natureza pegar frequentemente nos mesmos temas.
      Em relação a este assunto, D/s, como vê já vou no post 113 .

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  3. Pois... eu gosto de gelatina. Se comer 30 taças seguidas de gelatina sou capaz de me cansar de comer gelatina. Por outro lado, com o tempo vou deixando de gostar tanto de gelatina e passo a gostar de outras coisas. Há pessoas que gostam de gelatina até ao fim da vida e comem daquilo sem parar e comem daquilo sempre com o mesmo sabor e sempre da mesma maneira. São modos de estar e de comer. Ainda bem que uns deixam de gostar de gelatina e outros que continuam a comer dela.

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    1. Pior do que ser anónimo é ser chato e você consegue exceder-se: é um chato anónimo!
      Parabéns!

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  4. Gostei bastante,uma historia envolvente e excitante.
    Publique mais.

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  5. De fato essa Amélia é muito diferente da Amélia Brasileira cantada pelos falecidos Ataulfo Alves e Mário Lago. Acaso tivessem conhecido a do conto os versos da música certamente teriam sido outros e a teriam eleito como a mulher e verdade, pois nenhuma deve se alegrar em passar fome ao lado do homem e sim dar de comer. Gostei do texto e da técnica para não sufocar.

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