O grilo e a vontade

Grilo macho
Grilo fêmea - "grila"
Grilo e a sua toca
Num buraco da soleira da porta do meu prédio, no rés-do-chão, vive um grilo. À tarde e à noite, desde Junho, ele canta ininterruptamente, durante horas. Já não o posso ouvir mas como me ensina filosofia também não o expulsei de lá.
Desde que fiz 6 anos os grilos começaram a ensinar-me filosofia, política e moral. Poucos professores foram tão influentes no meu pensamento como o foram os grilos.
Em relação aos meus professores humanos os grilos têm três vantagens: são todos parecidos, vivem vidas parecidas e sabem viver.
Não é raro que os animais ensinem filosofia aos filósofos, por exemplo foi um rato que ensinou a viver ao meu mestre Diógenes. Era um rato como os outros ratos. Sábio como todos os ratos.
Aliás, nos livros escolares dos nossos pais havia um grilo, ufano da sua beleza e canto que acabava a ser enjaulado numa caixa - um ensinamento moral adequado `ditadura de Salaz: não te evidencies, não chames à atenção ou fodem-te!
Como dizia, sou discípulo de grilos desde os 6 anos e vou contar-te como tudo começou.
Um dia a minha mãe ensinou-me como apanhar, caçar, um grilo e a diferenciar os grilos que cantam e têm 2 rabos das grilas que não cantam e têm 3 rabos.
Como os grilos não gostam de ser apanhados por mulheres, o moço resistiu um bocado. Quando a minha mãe se aproximou escondeu-se bem fundo dentro da sua toca. Achei estranho mas essa foi a primeira lição filosófica que me deu para toda a vida: se vais foder alguém não esperes que ele colabore!
A minha mãe não desistiu. Explicou-me que a toca do grilo é justinha para ele entrar e como tinha entrado de cabeça para baixo tinha o rabo virado para cima. Então ela pegou num feno fino e flexível e enfiou-o no buraco, ofendidíssimo pelo desplante de lhe enfiarem um feno no cu, o parvo do grilo saiu cá para fora, foi apanhado e colocado num saco de plástico. Hoje eu aprenderia muitas lições deste gesto digno do meu professor grilo mas na altura - tinha 6 anos - aprendi apenas uma segunda lição filosófica: se alguém te quer mesmo foder não importa o quão forte ou sábio sejas, vais ser fodido!
Gaiola para grilos
A continuação da história é a habitual entre os camponeses: à noite, à lareira, o pai faz uma gaiola de cana, coloca o grilo lá dentro e tapa a abertura com um pedaço de cortiça, cortado à medida. Aqui ao lado está uma dessas gaiolas com um erro de concepção fácil de corrigir: a greta demasiado grande do lado direito permitiria facilmente ao grilo fugir.
E alí ficou um grilo encarcerado - fodido - suspenso de um prego na lareira, alimentado com pequenos pedaços de folha de alface. Criança, eu era feliz de vê-lo, escuro e luzidio com as suas pequenas manchinhas amarelas, e mais ainda de escutá-lo cantar e filosofar. E ensinou-me uma terceira lição filosófica: podes estar a foder alguém mas se lhe dás boa comida, ele até canta!
Durante uns dias fui o orgulhoso Dono de um grilo. Como Dono tinha de fazer a  manutenção da gaiola, o que  é facilitado pelas gretas na cana. Bastava pegar na gaiola e abanar, caiam os restos de alface e as caganitas defecadas. O que me ensinou uma quarta lição filosófica: se és Dono de alguém também és dono da merda que faz!
Entretanto a novidade esmoreceu e deixei de ser cuidadoso com o meu professor. Um dia à noite, ao chegar a casa, a gaiola estava vazia, o grilo tinha roído parte da cana, aberto um buraco e fugido. Essa foi a quinta lição filosófica que me ensinou: se alguém quer mesmo que deixes do foder, podes ter a certeza que deixarás do foder!
Desde então, desde aquele longínquo Verão, passei eu a caçar os meus grilos professores. Nunca dominei a técnica do feno fino no cu e por isso inventei uma outra mais eficiente. Após ter experimentado métodos brutos ou ineficientes, fazia-me acompanhar de uma garrafa de água, detectava a toca, deitava calmamente lá para dentro um fio de água e o instinto do mestre-grilo fazia o resto, perante a evidência de inundação saía da toca às arrecuas e se era formoso eu apanhava-o, leva-o para casa e metia-o na gaiola que entretanto tinha aprendido a fazer. Foi então que começaram a surgir as surpresas contrárias aos ensinamentos de meu pai e da igreja. Inundava a cova e para meu espanto às vezes saiam dois grilos, um grilo e duas grilas, dois grilos e duas grilas, ou até combinações ainda mais estranhas. Aprendi assim a sexta lição filosófica, a última de que me recordo: quando a tesão aperta aquilo que dizem que os animais fazem não é o que os animais fazem!
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Passaram quase 40 anos sem que voltasse a ter um grilo por professor até que este se instalou num buraco da soleira da porta do rés-do-chão. Veio ensinar-me que Schopenhauer estava correto e que os cristãos estão errados: não há um sentido para a vida, para o mundo ou para a humanidade. Veio recordar-me que somos escravos de uma vontade cega, sem sentido, da qual não escapamos e que temos a nossa liberdade reduzida a NADA. Concluiu dizendo-me que o livre arbítrio foi uma invenção oportunista, uma ilusão de liberdade e responsabilidade, para permitir o castigo dos erros morais - pecados - e a fantasia do Juízo final. Há meses que repete a lição, o que é normal num bom professor e só hoje a entendi com clareza, o que também é normal porque a partir de certa idade temos dificuldades de aprendizagem.
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E como ensina ele a sua lição?
Com simplicidade, como todos os grilos sábios, friccionando as asas e cantando horas a fio. Bom, suponho que se alimente de algo e faça a higiene pessoal mas certamente não fará mais nada: é um grilo. E grilos não têm dúvidas morais, problemas de consciência, não querem deixar de ser grilos ou ser grilos depois da morte, provavelmente nem sabem que vão morrer. Se têm fome, comem, se têm vontade de cagar, cagam. Se têm vontade de cantar, cantam. Nem sequer sabem que eu existo.
Mais importante é que não sabe que está fora de lugar. Mas que faz um grilo numa rua, no coração da cidade de Lisboa, no meio do Bairro Alto, a quilômetros da grila mais próxima, cantando para atrair grilas e ameaçando grilos que não existem, durante meses a fio: sem desfalecer, sem hesitar um instante, sempre feliz?
Simplesmente segue a uma vontade cega, amoral, cumprindo com um papel que não escolheu mas que se pensasse julgaria ser o seu,  tal qual como eu e como tu, leitor.

Comentários

  1. Excelente texto e boas lições aprendidas com o grilo. Não é surpresa. Mas certamente não foi ele o professor, pois como os demais animais, não pensam, logo, não pode ensinar.
    Pode-se atribuir esse aprendizado à capacidade de percepção humana, in casu, desenvolvida tão tenramente. Não fosse o grilo, seria o lagarto, o pássaro, etc.
    Quanto ao sentido da vida, esse é o maior bem da humanidade... Independente do livre arbítrio (muitas vezes dominado pela vontade cega, é certo), ela sempre faz sentido.
    Mesmo que a vida não faça sentido para muitos, com certeza fará para alguém, pelas lições (boas ou ruins) que o ser humano tem a dar.
    Ser Dono de algo (mesmo sem querer, em alguns casos) também é parte da condição humana, faz sentido.
    Entendo não ser salutar cultivar uma visão simplista quanto ao errado ou correto, tudo vai depender da concepção humana de cada um, o que, absolutamente, não é imutável.
    No tocante aos papéis do homem no teatro da vida, estes, de fato, não estão definidos, podem ser nossos ou não, entretanto, existe a possibilidade de escolha (insisto, ainda que dominado pela vontade cega, pois esta também é uma escolha).

    P.S.: Apesar de gostar de Grilos (os bem verdinhos, de árvore – amuleto para tantos), muitas vezes eles podem ser extremamente chatos com seu canto monótono e interminável.

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